Brecht, um homem num tempo de desordem


Há 60 anos, fulminado por um ataque cardíaco, morreu Bertolt Brecht, um dos maiores dramaturgos do século vinte, senão o maior de todos.

Por Joan Edessom de Oliveira[*]




Brecht foi um intelectual do seu tempo, um tempo sombrio, como escreveu


Sua influência no teatro é reconhecida por correntes artísticas as mais diversas. Marxista, revolucionário, deixou uma marca profunda na poesia e nas artes cênicas. José Antonio Pasta, crítico literário e teatral, afirmou que “Brecht foi o artista que acertou o relógio do teatro com a modernidade”.

O autor de “Os fuzis da senhora Carrar”, “Terror e miséria do Terceiro Reich”, “A vida de Galileu”, “Mãe Coragem e seus filhos”, dentre outros, continua sendo um dos mais encenados da história do teatro.

Sua influência no teatro brasileiro sempre foi muito grande. Grupos como o Oficina, Tá na Rua, Companhia do Latão e muitos outros são tributários do seu legado. Ingrid Koudela, professora da ECA-USP, declarou que “Brecht é um autor brasileiro, porque ele perpassa toda a história do teatro no Brasil, passando pelo Oficina e influenciando grupos até hoje”.

Zé Celso Martinez, brechtiano assumido, disse que “Brecht, acima de tudo, é um grande poeta. Trouxe o teatro épico, tornando os acontecimentos mais banais em ‘fatos históricos’, transparentes à história do mundo”.

Com a ascensão do nazismo, Brecht teve que abandonar a Alemanha, e suas obras foram queimadas em praça pública. No exílio, que durou até o fim da segunda guerra, fustigou violentamente Hitler, não cansando de denunciar as suas atrocidades. Voltou para a Alemanha e lá permaneceu até a sua morte, um intelectual engajado, lutando lado a lado com a classe operária.

Sua poesia, como seu teatro, carrega o épico e o didático como marcas. Brecht foi um intelectual do seu tempo, um tempo sombrio, como escreveu.

Nos dias sombrios que hoje assombram novamente a Europa e o mundo, nos dias sombrios que nos assombram em nosso próprio país, as palavras de Brecht soam assustadoramente atuais. Vivemos também, hoje, em um tempo “em que é quase um delito falar de coisas inocentes”.

Brecht, para usar as suas próprias palavras, misturou-se aos homens em tempos de desordem, em tempos turbulentos indignou-se com eles, comeu o pão em meio às batalhas, ocupou-se do amor descuidadamente, e assim passou o tempo que lhe foi concedido sobre a terra.


Aos que vierem depois de nós

Bertolt Brecht

(Tradução de Manuel Bandeira)

Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.


Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais frequentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.




*Joan Edesson de Oliveira é educador, mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará

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